Caracu - Patriarca do Rebanho
Matéria: Globo Rural (Por Claudio Cerri / Fotos Ernesto de Souza) Abril de 1993
Quanto mais velho, melhor
Único europeu adaptado ao clima tropical, ele constitui uma reserva genética de 400 anos.
E volta ao pasto como opção para sacudir a produtividade da vacada brasileira, em projetos de cruzamento industrial.
Em genética, muitas vezes, a busca do novo pressupõe um resgate do passado. Não qualquer passado. Mas aquele mais primitivo, o mais rústico e tosco e, principalmente, o mais dissociado dos padrões dominantes de homogeneidade. Essa odisséia de cepas e temporalidades que constitui uma das leis de evolução da vida tem um personagem heroico no Brasil. Sua estética pesada e compacta em nada lembra a agitação nervosa do futurismo científico. Mas a morfologia bovina que ele carrega com a tolerância dos ruminantes encerra uma informação genética única: a da adaptação de um gado de sangue europeu ao caldeirão dos trópicos.
O caracu não é um bovino qualquer. Mais que um boi, é um documento da fundação do Brasil. Um animal que chegou aqui em 1534, embrenhou-se na selva e no sertão, varou cerrados e várzeas, colonizou planícies e montanhas, sangrou, infectou-se, teve as veias invadidas pela erupção biológica dos trópicos numa transfusão sistemática, contínua, inédita no mundo em se tratando de um gado europeu. Em quatro séculos, o sangue dos Bos Taurus aquitanicus, originário do Além-Tejo português, tornou-se apto para se assenhorar da geografia brasileira, desde o frio sulista até a explosão solar amazônica, pantaneira e nordestina.
O caracu teve a glória reservada aos vitoriosos. Tornou-se símbolo de vigor e saúde, sinônimo de força e de macheza. Num país em busca de identidade, seu nome virou marca de cerveja preta e encorpada. Ainda hoje, no fundão do Brasil, nos bares e botecos das periferias toma-se Caracu com ovo, batida no liquidificador, com casca e tudo, mais duas colheres de açúcar. Em jejum, logo pela manhã, esse coquetel de virar estômagos mais sensíveis tem efeitos poderosos, segundo seus apreciadores. Só comparáveis aos de um famoso chá conhecido como “pau-de-resposta”.
O caracu perdeu lugar no pasto e no imaginário nacional com a entrada maciça do zebu na pecuária brasileira a partir dos anos 40. Em 1969 os jornais noticiaram o fim da raça que sobreviveu apenas pela teimosia de alguns criadores. Ser um especialista em Brasil só voltou a dar prestígio ao caracu nas últimas duas décadas, quando ele recuperou respeito como uma reserva de vigor e rusticidade, um primitivo capaz de injetar sangue europeu na vacada nelore para melhorar sua produtividade.
Sereno como quem sabe que o tempo rumina a seu favor, o caracu saboreia hoje as vantagens de ser um mestre na arte de eliminar calor. Seu trunfo é justamente o aspecto mais vulnerável das demais raças européias que vem sendo testadas no país. Quando jogadas no pasto, elas se transformam em verdadeiras panelas de pressão ambulantes, a perambular em busca de uma sombra salvadora no meio do capinzal.
“Boi que não consegue eliminar calor não funciona na nossa pecuária. A maternidade bovina brasileira são os campos do Centro-Oeste, onde predominam altas temperaturas quase o ano todo. É aí que o Brasil produz bezerros em grandes rebanhos criados no capim. A vaca dessa maternidade é a nelore e isso é inquestionável, dada a rusticidade e adaptação do gado indiano aqui. Mas o touro, o europeu capaz de elevar a produtividade dessa vacada, esse eu digo que é o caracu. E não sei de nenhum outro capaz de cobrir 30 a 40 vacas sob uma temperatura de 38ºC, com 90% de prenhez.” Quem fala entusiasmado assim é o veterinário José Geraldo Cândido. Ele convive com caracu há mais de uma década como técnico e como inspetor oficial de registro da Associação Nacional dos Criadores de Gado Caracu, com sede em Palmas, PR.
Embora apaixonados, os “caracuzeiros” têm razão no que dizem. Quando um animal não consegue controlar a temperatura de seu corpo sob pressão de climas adversos, todas as suas funções vitais começam a falhar. Essa sucessão de desequilíbrios agrava ainda mais o calor metabólico com danos sobre a flora, o rúmen, a circulação, os batimentos cardíacos e a espermatogênese do bicho. A falta de coordenação e os estados de prostração sucedem-se e podem levar à morte.
Embora seja uma relíquia genética, mais ou menos como um urso que tivesse se adaptado no Mato Grosso, o caracu não é um boi de colecionadores de antiguidades. Hoje mais que nunca, ele é um participante ativo do mercado pecuário brasileiro. A firme demanda por tourinhos caracu é um sintoma disso e tem motivado um número crescente de criadores a se dedicarem à raça. Um recenseamento feito em 1979 mostrava que o rebanho registrado de caracu era de pouco mais de 12 mil cabeças, com criadores em cinco Estados brasileiros. Hoje, os números coletados pela Associação dos Criadores de Caracu do Vale do rio Pardo apontam a existência de quase 220 criadores, mais de 60% deles integrados à raça na década de 80.
O rebanho registrado supera 31 mil cabeças e já invadiu 12 estados do país. “Um dos sinais mais importantes dessa expansão é que esse gado se transformou nos últimos anos na principal presença na Feira Agropecuária da Mogiana, realizada anualmente em Ribeirão Preto”, reforça o geneticista Alexander George Razook, do Centro Experimental de Zootecnia de Sertãozinho, SP, que desenvolve um rigoroso trabalho de seleção de caracu para corte.
Doutor no Brasil, o caracu portanto aprendeu também a driblar suas crises. No ano passado, em plena recessão, a Fazenda Recreio, berço da raça caracu há mais de um século, vendeu todo o lote de 300 tourinhos que tinha disponível para comércio. Distante 10 quilômetros de Poços de Caldas, no sul de Minas, a Recreio é famosa pelo trabalho perseverante da família Carvalho Dias, que desde 1893 tem registros escriturados de seu rebanho de caracu puro de origem.
Hoje seu plantel é formado por 3 mil animais cuidados de perto pelo zootecnista André Stein Carvalho Dias. Ele admite que, apesar da especialidade leiteira do caracu caldense, a demanda por tourinhos para cruzamento de corte tem levado a uma seleção mais atenta com aspectos valorizados da carcaça, como por exemplo o traseiro do boi, tido como mais estreito que a média dos europeus. Orgulhoso, esse Carvalho Dias de apenas 26 anos abre as porteiras de um curral para exibir uma escultura feita de músculos e carne, dona de uma garupa larga e gorda. Um touro imponente que confirma a importância que a seleção da Recreio vem dando à demanda por reprodutores de corte. “O nome dele é Monumento”, anuncia André, que não precisa nem explicar por quê.
O papel que touros como Monumento e seus descendentes poderão desempenhar no futuro talvez não se limite apenas à injeção de sangue europeu no gado zebuíno, que representa mais de 80% do rebanho nacional, calculado em 130 a 140 milhões de cabeças. Especialistas tarimbados, como o zootecnista Fausto Pereira Lima, consultor de grandes fazendas de gado do país, acreditam que a pecuária brasileira precisa não só melhorar seu padrão genético como também adotar um novo modelo de expansão. “O Brasil planejou errado a expansão de sua pecuária nos anos 70”, diz o professor Lima. “O país apostou tudo na ocupação da Amazônia pelas patas do boi, mas esse modelo fracassou. Hoje vivemos os efeitos disso. Faltam vacas no mercado e o preço do boi magro por conseguinte tornou-se proibitivo ao invernista. Creio que o rebanho nacional está com dificuldades de crescer além das 135 milhões de cabeças, com riscos até de diminuir”, adverte.
O novo modelo preconizado por muitos especialistas para recuperar o tempo perdido é o cruzamento industrial. Trata-se de obter o vigor híbrido- a heterose- com a mistura de sangue europeu e zebuíno, para a produção de novilhos precoces. Mesticinhos de zebu e europeu, que reúnam os melhores atributos de cada lado e estejam prontos para abate aos 2 anos/ 2 anos e meio. Ou seja, metade do tempo de engorda gasto na pecuária tradicional. Os técnicos não acreditam que a inseminação possa ser uma ferramente eficiente para desenvolver o cruzamento industrial em grande escala, nas condições do Brasil Central, onde os rebanhos são enormes e criados à base de sol e capim. “Nessas condições, a inseminação é difícil. Além do que, nosso desafio é ganhar tempo e produtividade e o índice de pegamento com inseminação é de 50 a 55%, no máximo”, observa o especialista Fausto Pereira Lima.
É justamente aí que a busca de um novo modelo para pecuária brasileira coincide com o resgate do caracu. Os técnicos calculam que existam hoje no país cerca de 30 milhões de vacas para produção. Mas que apenas 100 mil fêmeas sob manejo de cruzamento industrial, o que demonstra o enorme trabalho que o caracu tem pela frente para tirar a pecuária da ameaça de estagnação.
Os vaqueiros que labutam essa boiada não costumam palpitar sobre heterose ou genética. Mas se há um assunto do qual eles gostam de falar é sobre o caracu como bicho macho, que não erra um tiro. Um animal que não desperdiça munição. “Ele é um boi namorador que sabe a hora certa de correr a vaca. Fica só adulando, adulando, até chegar no ponto. Por isso não se cansa e pode cobrir até mais de 50 fêmeas numa estação”, garante Eli Ferreira de Souza, vaqueiro da “3 Irmãos”, fazenda próxima a Prata, em Minas Gerais.
Eli tem só 28 anos, mas já atingiu a maioridade em boi. Há 21 anos ele repete a rotina de passar o dia inteiro em cima de um cavalo, de olho na boiada. Sob sua guarda estão 600 cabeças de nelore do fazendeiro Lourival França, que tem um touro caracu para cada grupo de 60 fêmeas. “Se fosse nelore, teria que ser um para cada 30”, calcula o vaqueiro. Ele corre os olhos miúdos na boiada e aponta um exemplo de eficiência da raça. Tucano, um caracu mocho de quase 6 anos, corteja uma nelore que entrou no cio pela madrugada.
São quase 3 horas da tarde e ela ainda não completou as 12 horas que a tornarão receptiva à cobertura. Mas Tucano não se afoba. Cativa a vaca com um namoro paciente que não dispensa beijos e lambidas carinhosas. Ela resiste um pouco, mas logo entende o jogo e retribui. Eli consulta o sol depois de uns 40 minutos e ajeita o chapéu, Tucano agora parece mais ansioso e ensaia uma cobertura para testar a nelore, que não rabeia mais, até facilita, colocando o traseiro na direção do macho. É o sinal. E ele não vacila. Num impulso, ergue-se dominador sobre as patas traseiras, 700 quilos de carne e músculos retesados até o limite, uma massa compacta que por uma fração de segundo perambula no ar, órfã, até encontrar o corpo quente da fêmea e emprenhar mais uma nelore do rebanho. Eli se ajeita no cavalo e sorri como se Tucano tivesse provado de vez a importância do caracu na pecuária nacional.
Na verdade, essa definição terá que sair principalmente das experiências no Mato Grosso, do Norte e do Sul, onde se concentram os grandes rebanhos bovinos brasileiros. A 250 quilômetros de Campo Grande, por exemplo, fica a maior fazenda de gado do Brasil, que reúne 80 mil cabeças, numa área de 250 mil hectares, 60% dela no Pantanal. A Bodoquena (grupos Ometo, Bradesco e Votorantim) é o grande cenário de encontro do boi com a natureza no oeste brasileiro. Mais que isso, ela ilustra magnificamente a busca de caminhos que vive a pecuária do país.
A opção inicial do projeto foi cruzar sua vacada nelore com a raça simental, através da inseminação artificial. “Dentro das nossas condições de criação extensiva, porém” , explica João Carlos Marson, agrônomo e diretor geral do projeto, “a inseminação só é viável em vacas solteiras porque é impossível apartar fêmeas com seus respectivos bezerros, sem risco de muitos virarem guacho, crias sem mãe, sujeitos a altos índices de mortalidade. “Foi pensando justamente em elevar a produtividade no plantel de vacas paridas, num regime de cobertura a campo – para o qual não existe outra opção européia que aguente o Pantanal -, que a Bodoquena iniciou algumas experiências com touros caracu. Hoje a fazenda possui um plantel de 1000 cabeças com sangue dessa raça. E apesar de ainda não ter definido totalmente sua matriz de cruzamentos, os primeiros resultados já chamaram a atenção dos técnicos. “Enquanto o nelore precisa de 42 meses para atingir o ponto de abate, com 17 arrobas, o cruzado, ainda que tenha apenas ¼ de sangue caracu, está pronto antes dos 36 meses”, atesta Marson. A eficiência do caracu em áreas alagadiças, onde ele resiste mais e pasta melhor que o próprio nelore, é outro fator que tende a intensificar sua presença no Pantanal. “Só não investimos mais em tourinhos porque nos últimos anos os preços do caracu explodiram no Mato Grosso, mas estamos de olho no mercado”, explica o diretor da Bodoquena.
O crescimento da demanda por tourinhos no Mato Grosso certamente já reflete os bons resultados alcançados com eles em projetos pioneiros de cruzamento industrial. Um dos mais adiantados é o da família Schneider, que possui 3.600 hectares e 3 mil cabeças em três fazendas localizadas num raio de 100 quilômetros de Cuiabá. O pai, Arno, e os filhos, Luís, Carlos e Arno Filho, vieram do Rio Grande do Sul para o Mato Grosso para plantar soja e entraram na pecuária há menos de dez anos, mas já têm muito para mostrar. No ano passado, os Schneider iniciaram a comercialização de novilhos precoces, abatidos com 2 anos de idade e o peso de 16/17 arrobas. “O que estamos fazendo é produzir duas gerações de boi no mesmo prazo e no mesmo espaço onde a pecuária convencional só obtém uma engorda. Ou seja, vamos colocar 32/34 arrobas no mercado em quatro anos, enquanto o modelo antigo só produz 17 arrobas”, resume Arno, orgulhoso de seu projeto.
A receita dos Schneider para chegar a esse resultado é o cruzamento industrial do seu rebanho nelore com 40 touros caracu. A cobertura é feita a campo com índices de 80% de prenhez. A taxa de mortalidade é mínima e a bezerrada é apartada da mãe ao atingir 110 quilos, trocando a teta pela brachiara brizanta sem perda de peso. “Como abatemos um animal precoce”, explica Luís, “sua carne é mais macia, do tipo 'marmorizada', já que a gordura se entrelaça às fibras. Além disso, sua estrutura óssea é menos desenvolvida, o que dá um rendimento de carcaça superior ao do nelore, em torno de 54%.”
Os Schneider talvez foram os que chegaram mais perto de uma receita capaz de extrair do caracu tudo o que ele pode oferecer. Seu êxito agora tende a se multiplicar com dois incentivos. Alguns frigoríficos já acenam com um pagamento adicional pela arroba de maior qualidade do cruzado. E no Mato Grosso do Sul, o governo oferece uma isenção de 1/3 do ICMS para quem aderir ao novo modelo de pecuária. O caracu, assim, caminha, ao que parece, para cumprir no Mato Grosso seu destino genético, de emprestar ao novo o vigor do primitivo.
Matéria: Globo Rural (Por Claudio Cerri / Fotos Ernesto de Souza) Abril de 1993